Foto: Cezar Roberto Bitencourt
PARTE II
Alternativamente, acreditamos, por amor ao texto legal que, segundo se diz, não contém palavras inúteis, verifica-se a hipótese de inconstitucionalidade parcial, com redução de texto, suprimindo-se a equivocada expressão “recebê-la-á”, que, reconhecidamente, vai de encontro a todo sistema que o novo diploma legal pretende implantar.
Quanto ao disposto no art. 397, exceção feita à alínea IV (extinta a punibilidade do agente), todas as demais (I – a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; II – a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; e III – que o fato narrado evidentemente não constitui crime) são hipóteses de inadmissibilidade com alcance de mérito, a que antes denominávamos rejeição, e em que se entendia cabível recurso de apelação. A extinção de punibilidade, cujo reconhecimento não pode ser confundido com decisão absolutória, foi inserida no rol desse dispositivo pelo só fato de que, inadmitida a ação ao amparo de prescrição, por exemplo, outra denúncia ou queixa não pode ser tolerada quando oferecida em razão do mesmo fato. Melhor seria se o legislador, no que respeita às causas extintivas da punibilidade, tivesse apenas remetido ao art. 61 do diploma.
Não foi sem causa, decerto, que, cuidando dos procedimentos, já na primeira regra, no inciso III, do § 1º, do art. 394, a novel legislação introduziu comando que mantém inalterado o modelo dos Juizados Especiais Criminais para os casos de infrações de menor potencial ofensivo. Ou que sentido haveria em a legislação – cujo propósito uniformizador é inquestionável – adotar posição conservadora tão somente em relação aos procedimentos ordinário e sumário, mantendo expressamente inalterado o sistema da lei 9.099/95? E lá, nos Juizados Especiais, não paira dúvida de que o procedimento seja de contraditório antecipado. Veja-se, a propósito, interessante ementa da Turma Recursal da Capital Gaúcha:
APELAÇÃO DEFENSIVA. AMEAÇA. ARTIGO 147 DO CÓDIGO PENAL. PRESCRIÇÃO.
“Havendo momento legal próprio no procedimento sumaríssimo da Lei 9099/95 para o recebimento da denúncia, somente este tem o potencial jurídico para a interrupção da prescrição, no plano do direito material. Denúncia recebida antes de ser o réu citado e apresentar defesa prévia não observa o devido processo legal, conforme artigo 81 do citado diploma, não provocando, portanto, a interrupção do prazo prescricional. Este, no caso, foi interrompido na audiência, após citado o réu a apresentada defesa prévia. Preliminar de prescrição acolhida. Unânime.”
Por outro lado, é necessário atentar para o que agora dispõe o inciso I, do art. 156, do diploma processual, com a redação que lhe foi dada pela lei 11.690, de 09 de junho de 2008:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
Em que momento dar-se-á essa produção antecipada de provas? A questão mais uma vez exige interpretação sistemática: (1) referida providência não pode, decerto, acontecer em momento anterior ao oferecimento da denúncia ou queixa, sob pena de o juiz substituir-se à autoridade policial, o que soaria totalmente desconexo frente ao sistema que adotamos; (2) também não haveria qualquer lógica em que pudesse acontecer após o juízo de admissibilidade, porquanto, se fosse assim, não se cogitaria de produção antecipada de prova. A conclusão que se impõe, portanto, é de que ao juiz é facultado dilatar a prova no intervalo que medeia entre o oferecimento da inicial acusatória e o juízo acerca de sua admissibilidade. E não se trata de novidade, pois é exatamente disso que cuida o § 5o, do art. 55, da lei 11.343 (lei de drogas), em vigência desde 2006; a inovação agora contida no inciso I, do art. 156, consiste apenas em estender essa possibilidade a todos os procedimentos, o que impõe concluir que em todos eles terá de haver contraditório antecipado; e isto porque não haveria lógica em o juiz antecipar prova antes de ouvir a defesa, para o só efeito de uma possível rejeição liminar. Portanto, a faculdade que a lei entrega ao juiz consiste, fora de duvida, possa, apresentados os argumentos da defesa, e considerando sua relevância relativamente às possibilidades de rejeição ou absolvição sumária, antecipar elementos de prova para, só depois, decidir sobre a admissibilidade da ação.
Os reclamos, que aqui e ali se fazem ouvir, de que um modelo de contraditório antecipado, em que o recebimento da denúncia ou queixa só aconteça após manifestação defensiva, ensejaria recrudescimento da prescrição; que a providência citatória pode demandar tempo significativo em alguns casos, o que retardaria o juízo de admissibilidade; decerto não podem ser tomados em conta de “argumento” para a correta aferição do novo sistema. Em primeiro lugar, o eventual retardamento em face da citação, deslocando o marco interruptivo da prescrição para o futuro, tem duplo significado: (1) aumenta, é certo, o lapso temporal entre o fato e o recebimento da denúncia ou queixa; (2) em contrapartida, diminui o lapso entre o juízo de admissibilidade e a sentença condenatória recorrível; assim, tanto pode contribuir para a prescrição quanto para evitá-la. De outra parte, lembremos que a possibilidade de defesa preliminar, assegurada nos artigos 514 do diploma processual e 4º da lei 8.038/90, igualmente reclama providência notificatória que pode retardar o juízo de admissibilidade, e nem por isso foi alguma vez questionada à luz da maior ou menor incidência de prescrição. Afora tudo isso, eventual aumento dos casos de prescrição, ainda que isso fosse verdadeiro, teria de ser visto como uma conseqüência do novo modelo, não nos parecendo razoável colacioná-lo a guisa de argumento para interpretar a lei neste ou naquele sentido.
Também se escuta observações de que seria despropositado citar o acusado antes do recebimento da denúncia ou queixa. Em verdade, como já dissemos anteriormente, é necessário atentar para a redação do caput do art. 363, introduzida pela reforma:
Art. 363. O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado.
Sendo assim, não nos parece existir qualquer obstáculo a que a citação aconteça antes da admissibilidade. Aliás, lembre-se mais uma vez que a lei nº 5.250 (lei de imprensa), desde o distante ano de 1967 prevê a citação antes do recebimento da denúncia (art. 43, § 1º), e não temos conhecimento de que a doutrina tenha alguma vez feito oposição a isso. De outra parte, igualmente não prospera a alegação de que a admissibilidade deveria acontecer desde logo, pois que seria ilógico o juiz absolver sumariamente antes de receber a inicial. Mais uma vez o equívoco está em interpretar as novas regras tomando em conta o modelo anterior (revogado). À absolvição sumária contrapõe-se não à condenação, mas sim – e justamente – à admissibilidade da ação; tem-se, com isso, que a absolvição sumária (art. 397), tanto quanto a rejeição (art. 395), não só podem como devem acontecer justo no momento em que o juiz decide sobre o recebimento da inicial.
Não há dúvida de que uma norma será tanto pior quanto maior for o grau de dificuldade que impuser a seus intérpretes; não é menos certo, porém, que a leitura será tão pior quanto maior for o casuísmo incorporado ao espírito do intérprete. A reforma recentemente introduzida ao processo penal brasileiro contém graves defeitos: aqui e ali foi mutilada pelos arranjos de ocasião, que são característicos da esfera política, e que, via de regra, pouco têm a ver com a técnica do direito; “importou” instituições do processo civil, como a citação por hora certa, desconsiderando o fato de o processo penal ser preso a princípios quase sempre incompatíveis com as cousas do direito privado. Tudo isso faz com que a aplicação do novo sistema constitua importante desafio aos operadores do direito, de quem se espera a cautela necessária, na busca de uma interpretação que dê harmonia ao texto e, acima de tudo, venha despovoada de preconceitos ou interesses meramente institucionais.
Diante desse conjunto de argumentos, acreditamos que o novo modelo é sim de contraditório antecipado, e que o recebimento da denúncia ou queixa, assim considerado o juízo de admissibilidade da ação, dar-se-á após a manifestação defensiva. Reconheça-se que a controvérsia inicial sobre o tema guarda relação tão somente com o marco interruptivo da prescrição: não fosse esse “efeito” da admissibilidade e inexistiria relevância alguma em estabelecer qual o momento em que se dá o recebimento da denúncia ou queixa. O que nos parece necessário compreender – e defender – é que a reforma da legislação processual penal, por mais profunda que possa ter sido, não irá “derrogar” convicções há muito consolidadas, entre elas a de que recebimento da denúncia ou queixa, para que se erga à condição de causa interruptiva da prescrição, precisa ser tido como sinônimo de juízo de admissibilidade".
Fonte: http://www.facebook.com/
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