CONFLITOS ENTRE
DIREITOS FUNDAMENTAIS: INFORMAÇÃO E HONRA
*Rômulo de
Andrade Moreira
O Brasil
atravessou um período relativamente longo no qual as liberdades públicas
estiveram sacrificadas em razão de um regime político não democrático que se
instaurou no País quando os militares depuseram um governo civil eleito legitimamente.
Um golpe, não uma revolução. A partir desta ruptura institucional (ilegítima),
o País passou a viver à margem da Democracia, respirando um ar poluído pelo
medo, pela desesperança, pelo arbítrio, pela desconfiança, pelas deslealdades,
onde preponderavam as delações, premiadas ou não, a tortura, a corrupção, o
coronelismo, a burocracia estatal, o emperramento da máquina administrativa, a
incompetência na gestão pública, etc., etc. Salvava-se o futebol...
No
plano internacional, enquanto o mundo dividia-se entre as duas superpotências,
envoltas em uma perigosa guerra (fria), cada vez mais, e para sempre,
obedecíamos às ordens dos Estados Unidos (até o nosso sistema jurídico, nada
obstante a tradição do civil law,
vive a copiar o common law: delação
premiada, barganhas penais, relativização das provas ilícitas, privatização das
prisões, etc.).
Naquele
ambiente absolutamente sombrio, a imprensa sofria reveses cotidianos, subjugada
pelo governo que dispunha de um órgão especialmente designado para fiscalizá-la,
situação que se agravou sobremaneira após a publicação do Ato Institucional nº.
5, em 13 de dezembro de 1968, só revogado em 13 de outubro de 1978, com a
promulgação da Emenda Constitucional nº. 11. Mesmo com a revogação
do AI 5, a liberdade de imprensa continuou manietada. Os mais diversos meios de
comunicação seguiram monitorados pela Censura Federal. Telenovelas não foram ao
ar, mesmo após já gravados capítulos, redações de jornais foram invadidas,
outros ficaram inviabilizados financeiramente, até fecharem as portas,
jornalistas ameaçados e mortos, outros fugiram do País. Enfim, não havia
liberdade de imprensa. Fingia-se que se informava e o povo fingia que era
informado. E o governo militar, hipocritamente, flertava com alguma mídia em
troca de algumas concessões.
Com
a redemocratização do País, a partir da promulgação da Constituição, as
liberdades públicas, em particular, a liberdade de imprensa, destacou-se. E era
natural que assim o fosse. Era mesmo um desejo de todos nós, carentes que
estávamos de uma informação livre, liberta dos grilhões dos militares. A
imprensa libertou-se e isso foi muito bom. No texto constitucional ficou
consignado: "É assegurado a todos o
acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao
exercício profissional." (art. 5º., XIV). Também: "É livre a manifestação de pensamento, sendo
vedado o anonimato." (inciso IV), assim como "é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença." (inciso IX).
E,
então, onde quero chegar, se tudo parece muito óbvio? Bem, quando deixei o
ensino médio optei pelo curso de Direito e, após concluí-lo, ingressei no
Ministério Público (após uma rápida passagem pela Procuradoria da Fazenda
Estadual), onde estou desde então, quase sempre atuando na área criminal. Além
disso, dedico-me, estudando (muito) e ensinando (um pouco) Direito Processual
Penal. Noto, a cada dia, que as coisas têm mudado muito. Assustadoramente, eu
diria. Em que sentido? Explico.
É
certo que há o interesse público em saber o resultado de um determinado
julgamento judicial. Também está na Constituição que todos os julgamentos dos
órgãos do Poder Judiciário serão públicos. Correto. Tudo faz parte do jogo
democrático. Mas, é preciso que outras peças deste jogo sejam manejadas dentro
do mesmo tabuleiro. É o mesmo jogo, são as mesmas peças, os mesmos jogadores e
o mesmo tabuleiro. Vejamos, por exemplo, o que está escrito no art. 5º., X da
Constituição: "são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação."
Também
a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica),
promulgado no Brasil pelo Decreto Presidencial nº. 678/92 (com status de norma
supralegal, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal), após
estabelecer no art. 13 que "toda pessoa tem direito à liberdade de
pensamento e de expressão", afirma que o seu exercício estará
sujeito "a responsabilidades
ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para
assegurar o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas."
E
o que vemos e lemos hoje, e há muito, nos telejornais, nas revistas, nos
jornais, nas redes sociais, nos blogs, enfim, nos mais diversos meios de
comunicação? Trechos de delações premiadas que deveriam estar, por força de
lei, sob absoluto sigilo nos autos da investigação criminal, partes de
depoimentos de testemunhas, de interrogatórios de indiciados, fragmentos de interceptações
telefônicas e escutas ambientais também cobertas pelo sigilo (nem sempre
autorizadas pela Justiça, portanto, às vezes clandestinas, criminosamente
conseguidas), etc. E sempre material seletivamente fornecido pelos órgãos do
Estado que têm a guarda dos documentos. Isso é fato. Réus (mais) pobres e
ricos. Brancos e (mais) negros. Incluídos e (mais) excluídos.
E
mais: até o cotidiano de pessoas encarceradas em estabelecimentos prisionais,
onde se encontram sob custódia do Estado e, portanto, sob a responsabilidade do
governo brasileiro, é devassado e vendido nas bancas de revista e exposta
gratuitamente na rede mundial de computadores.
E
há algo ainda mais grave. Se tais fatos não fossem um agravo absurdo do ponto
de vista da vida privada e da intimidade da pessoa (que na esmagadora maioria
das vezes ainda nem foi julgada), o prejuízo do ponto de vista processual é
imenso, incomensurável, pois esta exposição midiática põe e expõe o julgador (e
também o acusador) em uma situação de pressão junto à opinião pública da qual
dificilmente ele se libertará corajosamente. O ato de acusar e o de julgar já
estão viciados, contaminados pela pressão da mídia, pelo fato noticiado, pela
capa da revista, pela manchete do jornal, pelos comentários dos amigos, enfim...
Ao
final e ao cabo, condena-se não em razão das provas, mas em virtude das
evidências noticiadas. A condenação impõe-se, não porque o Direito assim o
exige, mas porque é preciso que o leitor e o telespectador tenham uma resposta
(de preferência rápida, daí a razão das prisões provisórias infindas) acerca da
informação dada, pois não é possível que depois de tantos fatos postos, tantas
fotos postadas, não haja uma sentença dada, um castigo imposto! É assim a
lógica do sistema, não? Esta foi a razão pela qual comecei lembrando os tempos
difíceis do regime político comandado pelos militares brasileiros e como foi importante o papel da imprensa, seja
resistindo (pelo menos uma parte dela, veja, por exemplo, o Pasquim), seja,
após o fim da ditadura, fortalecendo o agora regime democrático.
A
liberdade de imprensa é um valor a ser a todo instante preservado e
conquistado. Os profissionais da imprensa devem ser sempre valorizados. Mas, é
preciso, por outro lado, que sejam também respeitadas outras liberdades, também
fundamentais. É a Constituição que exige. A Democracia custa muito caro para
todos. É ônus e bônus. São deveres e direitos. É um verdadeiro "toma lá, dá cá"
ético (se me entendem bem). Não é possível uma liberdade de imprensa que não
encontre freios, como, obviamente, não se pode admitir uma censura à imprensa.
Não
dá para admitir que trechos de uma delação premiada documentada em autos de uma
investigação criminal esteja no dia seguinte estampada em uma folha de um
jornal de circulação nacional ou em telejornal de grande audiência. Diga-se o
mesmo em relação às interceptações telefônicas ou escutas ambientais. Não é possível!
Pessoas presas, algemadas, que sequer foram indiciadas formalmente, não podem
ser expostas publicamente. É óbvio que isso gera um sentimento negativo que
seguramente implicará, também negativamente, no momento de se fazer o juízo de
acusação e, mais tarde, o juízo de condenação. Não, não é chegada a hora. Já
passou o momento de repensarmos este modo de atuar. Nós que fazemos parte desta
engrenagem chamada Justiça criminal: integrantes da Polícia, do Ministério
Público, Magistrados e todos os outros.
Nós
estamos lidando com gente e não estamos mais no século XVIII, quando “o povo reivindicava seu direito de constatar
o suplício e quem era supliciado”, pois o “condenado era oferecido aos insultos, às vezes aos ataques dos
espectadores.” Afinal de contas, “as
pessoas não só tinham que saber, mas também ver com seus próprios olhos. Porque
era necessário que tivessem medo; mas também porque deviam ser testemunhas e
garantias da punição, e porque até certo ponto deviam tomar parte nela. Ser
testemunhas era um direito que eles tinham e reivindicavam; um suplício
escondido é um suplício de privilegiado, e muitas vezes suspeitava-se que não
se realizasse em toda a sua severidade. Todos protestavam quando no último
instante se retirava a vítima aos olhares dos espectadores.” Tudo muito
parecido com o momento atual, só que este é um relato de Michel Foucault, da
França, do século XVIII (Vigiar e Punir – História da Violência nas Prisões,
Petrópolis: Vozes, 1998, p. 49).
Somos
seres racionais, trabalhamos com leis, normas jurídicas, princípios e regras,
com uma Constituição, sobretudo. A imprensa, por sua vez, tem o dever
republicano (e fundamental) de informar fatos efetivamente relevantes e
importantes para a sociedade, além, claro, de entreter, divertir, etc., sem
desabonar a honra das pessoas, desacreditá-las, ainda que, supostamente, tenham
praticado algum delito. Isso se chama credibilidade. Um dia pode se perder.
*Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS
**Nota do editor: autorizada a publicação pelo autor em e-mail pessoal.