"A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade... Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real." Rui Barbosa



sexta-feira, 9 de março de 2012

O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA SEGUNDO A LEI 11.719/2008 - PARTE I


O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA SEGUNDO A LEI 11.719/08

Cezar Roberto Bitencourt
Jose Fernando Gonzalez

PARTE I

A questão fulcral, parece-nos, preliminarmente, reside no juízo de admissibilidade da ação penal, ou seja, haverá um ou dois recebimentos da denúncia ou queixa, ou, mais precisamente, valerá a primeira ou a segunda previsão legal? A complexidade que o novo texto legal apresenta a um tema até então de fácil compreensão, recomenda uma reflexão mais alentada, na tentativa de contextualizá-lo adequadamente.
Por outro lado, estivesse já esgotada a possibilidade de rejeição, a manifestação obrigatória do acusado (art. 396-A), em que pode alegar ...tudo o que interesse à sua defesa..., tornar-se-ia, no mais das vezes, providência meramente formal, a exemplo do que antes já ocorria. Portanto, o novo modelo reclama interpretação sistemática dos dispositivos, não se podendo atribuir à expressão recebê-la-á um significado puramente textual; trata-se, segundo pensamos, de receber para o só efeito de mandar citar. Em não rejeitando liminarmente a denúncia ou queixa, o juiz determinará a citação, para que o acusado ofereça resposta. Adimplida essa providência defensiva o juiz deverá, diz a lei, absolver sumariamente o acusado quando verificar presente qualquer das hipóteses dos incisos do art. 397; ou, parece claro, repita-se por necessário, ainda rejeitar, caso só então reste convencido de que presente alguma daquelas hipóteses do art. 395.

Desde muito tempo os operadores do direito, em sua maioria, reclamavam modificações no processo penal; entre os argumentos, não raro o de que a atividade investigatória registra baixa efetividade em nosso sistema repressivo, sendo demasiadamente burocrática; ou que o processo propriamente dito seria moroso e permeável a um conjunto de práticas que tanto poderiam servir à busca da chamada verdade real quando à procrastinação pura e simples. Pois a reforma aí está, introduzindo profundas alterações em determinados pontos do sistema; nesse contexto, a Lei 11.719/08, em vigência desde 21 de agosto de 2008, que alterou institutos como a emendatio libelli e a mutatio libelli, bem como estabeleceu novas regras para os procedimentos em geral. Resta saber se todas essas modificações estão em consonância com a expectativa da comunidade jurídica, e se irão mesmo produzir os resultados que se apregoa. Faremos um breve estudo sobre o “novo procedimento” e, objetivamente, no que diz respeito ao recebimento da denúncia ou queixa.

No anterior modelo, o juízo de admissibilidade, a que sempre denominamos recebimento da denúncia ou queixa, dava-se, em regra, imediatamente após o oferecimento da inicial acusatória. Trata-se de providência relevante, porquanto constitui marco interruptivo da prescrição (art. 117, I, do Código Penal) e, ao menos no sistema anterior, presa ao princípio da indisponibilidade da ação; assim, recebida a inicial, tinha-se que a ação penal era (ou ainda é?) como uma flecha, que desprendida do arco que a impulsiona somente no alvo (a sentença) exaure a sua força.

Também não é de hoje que se discute a possibilidade de haver contraditório em momento anterior ao juízo de admissibilidade (recebimento da denúncia ou queixa); há vantagens nisso, tanto para o acusado (possibilidade de demonstrar desde logo que a ação é infundada) quanto para o próprio Estado Jurisdição (possibilidade de abreviar demandas inúteis e/ou aglutinar atos instrutórios). Não é outra coisa o que temos para os crimes de imprensa, pois a Lei nº 5.250/67, em seu art. 44, estabelece que o recebimento da denúncia só irá acontecer depois do oferecimento de resposta pela defesa; é o que também ocorre nos casos submetidos aos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95, art. 81) e, de certo modo, no procedimento previsto para os crimes de tráfico (Lei 11.343/06).

Pois é justamente quanto ao recebimento da denúncia ou queixa que a lei 11.719/08 enseja, a nosso sentir, maior controvérsia. O PL nº 4.207/01, que deu origem à lei, chegou ao Congresso Nacional com a proposta de uma uniformização dos procedimentos e, fora de qualquer dúvida, pretendendo um modelo de contraditório antecipado, em que o juízo de admissibilidade só aconteceria depois da manifestação defensiva; basta ver a redação que era pretendida para o art. 395:

“Art. 395. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de dez dias, contados da data da juntada do mandado aos autos ou, no caso de citação por edital, do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído.”

O projeto, no entanto, sofreu alterações no Congresso Nacional; e a redação que se pretendia dar ao art. 395 tornou-se, com emendas, aquela do atual art. 396. Ou seja:

Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.

Exceção feita ao marco inicial do prazo para oferecimento de resposta (foi abolida a idéia da contagem a partir da juntada do mandado aos autos) ou aos casos de citação por edital (a previsão foi deslocada para o parágrafo), o texto em vigência (art. 396) reproduz a redação pretendida pelo projeto para o art. 395, só que ali foi inserida a expressão “recebê-la-á”. Pode parecer, então, que o legislador teria pretendido retroceder ao antigo sistema, mantendo o juízo de admissibilidade ab initio. Ocorre que, em linhas gerais, as demais disposições do projeto foram mantidas, como adiante veremos; e muitas delas são, a nosso ver, incompatíveis com o recebimento da denúncia nesse primeiro momento. O legislador, então, pode até ter pretendido antecipar o recebimento da inicial (juízo de admissibilidade) para oportunidade anterior à citação, mas certamente não o fez.

Em primeiro lugar, antes que se passe à análise dos dispositivos introduzidos pela reforma, faz-se necessário lembrar que, ao menos sob enfoque jurídico – e para efeitos processuais –recebimento da denúncia ou queixa e juízo de admissibilidade são expressões equivalentes. Vejamos a doutrina: “‘Recebimento’ não se confunde com ‘oferecimento’, e caracteriza-se pelo despacho inequívoco do juiz recebendo a denúncia ou queixa. Despacho meramente ‘ordinatório’ não caracteriza seu recebimento.”

O exame sistemático do novo regramento permite que dele se extraia todo um conjunto de conclusões. E nos parece conveniente iniciar pala nova redação do art. 363:

“Art. 363. O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado.”

Para o anterior modelo, a relação processual se completava com o recebimento (admissibilidade) da inicial, daí o fundamento para que fosse esse o marco interruptivo do prazo prescricional (e não a citação); a partir desse marco o acusado transmudava-se à condição de réu; por isso benefícios, como a suspensão condicional do processo, estavam vinculados ao recebimento da denúncia (art. 89, § 1o, da Lei 9.099/95). A Lei 11.719/08 introduziu no processo penal, portanto, alteração profunda, de natureza estrutural, emprestando instituições típicas do processo civil; a redação atual do art. 363 atribui à citação válida no processo penal dignidade semelhante àquela estabelecida pelo art. 219 do CPC.

Num segundo momento, a novel legislação, cuidando da admissibilidade, enumerou circunstâncias, erigindo-as à condição de causas de rejeição (art. 395) ou absolvição sumária (art. 397). Não se deve pensar que essa seja uma inovação substancial, pois todas essas possibilidades (395 e 397) já existiam entre nós, e sua utilização não era rara. Qual o juiz que, antes da reforma, receberia uma denúncia inepta? Ou não poderia o juiz, antes, rejeitar a inicial por entender a existência manifesta de causa excludente da ilicitude? O que a reforma fez foi uma tentativa de aperfeiçoar a redação do art. 43 (revogado), dividindo os fundamentos da inadmissibilidade em dois grupos: o primeiro diz com a forma, e a esse a lei denominou causas de rejeição; o segundo alcança o mérito e diz-se causas de absolvição sumária; a rejeição faz coisa julgada só formal; a absolvição sumária faz coisa julgada material. Mas isso também não é novidade: desde muitos anos o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul vem entendendo que “rejeição” e “não recebimento” são coisas distintas; a Corte considera “rejeição” a recusa pelo mérito, e “não recebimento” pela forma. Por isso nos casos de “rejeição” entendia cabível recurso de apelação.

No entanto, a equivocada interposição de um recurso por outro resolvia-se pela fungibilidade recursal, como exemplifica o seguinte aresto: “Princípio da fungibilidade. Recebimento do recurso como apelação. A decisão que rejeita a denúncia, com fulcro no art. 43 do CP, desafia apelação-crime e não recurso em sentido estrito. Aplicação do princípio da fungibilidade para receber a inconformidade ministerial como apelação.”

Pelo novo sistema, o juízo de (in)admissibilidade dar-se-á do seguinte modo: oferecida a denúncia ou queixa, ao juiz é reconhecida, desde logo, a faculdade de rejeição liminar (art. 396). Evidente que esse ainda não será o momento definitivo para a rejeição propriamente dita, mas apenas uma possibilidade para que o juiz faça isso liminarmente; assim, frente a uma inicial notadamente inepta, poderá o juiz “rejeitá-la” de plano. A decisão que se contrapõe à “rejeição liminar” decerto não pode ser confundida com “recebimento”, ao menos para os efeitos jurídicos que disso podem adviir ao acusado, como a interrupção da prescrição, por exemplo. Pensamos que o juiz, nessa oportunidade, em não rejeitando liminarmente a inicial, proferirá despacho meramente ordinatório, determinando a citação. A admissibilidade “stricto sensu” só acontecerá mais tarde, quando o juiz poderá, examinados os argumentos de defesa, ainda rejeitar a inicial, ou absolver sumariamente o acusado, ou receber a inicial. E, como nos parece totalmente despropositado possa haver dois juízos de admissibilidade, temos que o art. 396 cuida tão somente de uma possibilidade de rejeição liminar. Ou isso ou seria necessário dizer que recebimento da denúncia não equivale a juízo de admissibilidade; e para isso seria necessário renegar conceitos doutrinários e posições jurisprudenciais consolidados desde décadas.

Fonte: http://www.facebook.com/

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