"A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade... Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real." Rui Barbosa



segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

IMPUTAÇÃO OBJETIVA - PARTE II


IMPUTAÇÃO OBJETIVA - PARTE II

Apesar das divergências, quanto à relevância ex ante da conduta, destacamos que ela poderá ser aferida pelos critérios que consideramos realmente úteis para este fim, e que passamos a analisar a seguir. Em primeiro lugar, é necessário realizar um juízo de valor acerca da perigosidade da conduta, nos termos da teoria da adequação social. Ou seja, entendendo a perigosidade como característica da ação, reconhecível e possível de valorar desde a perspectiva ex ante, e que constitui um requisito básico do desvalor da ação. Dessa forma, analisaremos — elaborando um juízo de probabilidade —, se o risco criado pela conduta, objetivamente adequado para a produção do resultado, é, ademais, previsível ex ante para o sujeito que o realiza.

Ultrapassado esse primeiro filtro valorativo, o passo seguinte consiste em identificar se o risco ex ante adequado à produção do resultado é, de fato, um risco permitido, ou se constitui um risco proibido. É nesse momento que começamos a valorar se a conduta corresponde, ou não, à prática de uma atividade lícita, socialmente útil, realizada dentro do limite mínimo da prudência, isto é, atendendo aos cuidados minimamente necessários para a vida em sociedade. Esse critério pode ser explicado por meio da função preventiva do Direito Penal, no sentido de que este não tem a finalidade de proteger de maneira absoluta os bens jurídicos relevantes para a sociedade, mas somente de maneira residual e fragmentária.

Pode ocorrer, no entanto, que, apesar de a conduta do sujeito ser adequada para a produção do resultado e de representar a criação de um risco proibido, não deve ser considerada relevante para efeitos penais. Referimo-nos aos casos em que a conduta realizada represente uma diminuição do risco de lesão do bem jurídico. Este critério, proposto por Roxin, aplica-se às hipóteses em que o sujeito modifica o curso causal e diminui a situação de perigo já existente para o bem jurídico, e, portanto, melhora a situação do objeto da ação . Assim, de acordo com esse critério, “Apesar de ser causa do resultado, quem pode desviar a pedra que vê voar em direção à cabeça de outrem, sem a tornar inócua, mas fazendo-a atingir uma parte do corpo menos perigosa, não comete lesões corporais. Tampouco as comete o médico que, através de suas medidas, consegue unicamente postergar a morte de seu paciente” . E a aplicação desse critério possibilitaria decidir, já no âmbito da tipicidade, a relevância penal da conduta, não sendo necessário, nesses casos, indagar sobre a caracterização de uma causa de justificação.

Com relação ao segundo juízo de imputação, neste âmbito, trata-se de verificar se o resultado típico pode ser atribuído à conduta previamente identificada como relevante. Para este fim, são úteis os seguintes critérios sistematizados pela teoria da imputação objetiva que passamos a analisar a seguir.

Em primeiro lugar, é necessário constatar a relação de causalidade nos termos da teoria da conditio sine qua non. Esta constitui, como já advertimos, o primeiro fator a levar em consideração: se a conduta não pode ser vista como causa do resultado, não há que seguir indagando sobre a relevância típica do comportamento . Superado esse primeiro requisito, isto é, constatado que a conduta deu causa ao resultado, desde uma perspectiva naturalista, passamos a indagar se esse resultado representa, desde uma perspectiva normativa, justamente a realização do risco proibido criado pelo autor, ou se outros fatores interferiram na sua produção. A esse respeito são precisas as palavras de Frisch, segundo o qual “os resultados que não possam ser concebidos como a realização do risco típico desaprovado, criado pelo autor, ficam excluídos como resultado típico imputável ao (obrar do) autor” .

E de que forma demonstra-se essa relação de risco que integra o segundo juízo de imputação? Mediante quais critérios?

Nesse âmbito, não encontramos um elenco de critérios devidamente definidos. Em realidade, com a afirmação de que deve ser constatada a relação de risco para a imputação objetiva do resultado, somente logramos identificar o problema que deve ser resolvido desde a perspectiva normativa, e não, propriamente, os critérios que são válidos para esse fim. Com efeito, com esse ponto de partida, vem sendo utilizada uma série de critérios para resolver antigos problemas que já vinham sendo suscitados pelas teorias da causalidade. Entre os critérios utilizados, valem destacar o juízo de adequação do resultado, a teoria da evitabilidade, o critério do incremento do risco e o critério do fim de proteção da norma.

Como primeiro degrau de valoração, devemos analisar se existe uma relação de adequação entre o resultado produzido e a conduta que representa a criação de um risco proibido. O juízo de adequação será agora realizado não como um juízo de prognóstico sobre a previsibilidade da produção do resultado desde a perspectiva ex ante, mas desde a perspectiva ex post, ou seja, uma vez conhecidas todas as circunstâncias do fato, para que seja possível aferir se o resultado foi realmente produzido pela conduta (ex ante) adequada e jurídico-penalmente relevante, ou se foi provocado pelo desvio do curso causal, pela concorrência de outros fatores causais, ou pela ação de elementos imprevisíveis .

Esse critério é, sem embargo, insuficiente para valorar a relação de risco quando ex post se constata que o resultado se produziria de qualquer forma, inclusive se o autor tivesse adotado um comportamento conforme o Direito. Dito de outra forma, para aqueles casos em que existe desvalor de ação, o autor com o seu comportamento cria um risco proibido, mas, desde a perspectiva ex post, se observa que o resultado não poderia ser evitado, nem mesmo na hipótese de que o risco houvesse permanecido dentro dos limites permitidos. Assim, por exemplo, imaginemos o caso do gerente de uma fábrica de pincéis que entrega a seus trabalhadores pelos de cabra que não foram previamente esterilizados, contraindo os trabalhadores um bacilo que acabou por provocar a morte de quatro deles, e que, finalmente, fique demonstrada a inutilidade das medidas convencionais de esterilização para evitar o contágio . A questão de fundo suscitada por esse caso é formulada por Martínez Escamilla nos seguintes termos: “Que relevância possui para a imputação objetiva de um resultado o fato de que com segurança, probabilidade ou possibilidade, esse mesmo resultado também se produzisse com o comportamento conforme o direito?” .

Nesses casos, a discussão gira em torno da possibilidade de imputação de resultados não planificados, pelo menos a título de imprudência. Deve a conduta ser punida (sem ignorar o princípio da excepcionalidade do crime culposo)? Ou a impossibilidade de evitar o resultado afasta, inclusive, o desvalor de ação? Na opinião de Frisch, quando, desde a perspectiva ex post, chega-se à conclusão de que um acontecimento perigoso não poderia ser controlado com uma medida de cuidado planificável (no exemplo referido, por meio da esterilização dos pelos de cabra, utilizando os métodos convencionais), o comportamento que deu lugar a esse risco não entra no âmbito do risco proibido, pois faltaria, para o autor desse comportamento, a possibilidade de evitar o resultado. E isso porque “Os perigos em virtude dos quais é desaprovada a ação estão também caracterizados […] por aspectos instrumentais (possibilidade e probabilidade de evitar o resultado); se, com referência ao fato real, não se realiza ex post o critério instrumental determinante, fica assim verificado, ao mesmo tempo, que não se realizou nenhum curso causal que a norma tenha que (ou possa) prevenir, e, portanto, nem mesmo o perigo desaprovado pela norma” .

O juízo de evitabilidade nos conduz, portanto, a isentar de responsabilidade nesses casos. Mas, enquanto existir margem de dúvida sobre a evitabilidade do resultado, isto é, quando não se souber, com segurança, se a conduta realizada dentro do risco permitido poderia evitar o resultado típico (no exemplo citado, imaginemos que não se pudesse determinar com certeza a ineficácia das medidas de desinfecção dos pelos de cabra), as soluções serão divergentes.

Para Roxin, se o autor ultrapassa o risco permitido e, dessa forma, incrementa as possibilidades de acontecimento do resultado típico, então este resultado deve ser imputado àquela conduta perigosa . Mediante o critério do incremento do risco poderíamos chegar, portanto, justamente a uma solução contrária ao princípio in dubio pro reo, sendo, nesse sentido, favorável à imputação do resultado à conduta. Essa concepção roxiniana é criticada por Martínez Escamilla — com o qual fazemos coro —, que considera o critério do incremento do risco carente, em última instância, de referências normativas que fundamentem os resultados a que conduz .

Com essa perspectiva crítica, a doutrina especializada considera mais adequado solucionar os casos duvidosos por meio do critério do fim de proteção da norma, refletindo sobre os riscos que a norma penal pretende e pode evitar. Mediante esse critério, não poderá ser atribuído um resultado típico a uma conduta perigosa se a medida de proteção, ex ante adequada para evitar o resultado típico, é considerada ex post inadequada para evitá-lo. Na verdade, não entraria no âmbito de proteção da norma de cuidado evitar resultados impossíveis de controlar, de maneira ex ante planificada: assim, ficaria afastada a imputação do resultado, mesmo estando demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado . Ocorre que, inclusive entre os autores que defendem esse critério, não existe unanimidade quanto ao seu alcance. E essa é uma questão de especial importância, porque repercute diretamente no juízo de valoração acerca da atribuição, ou não, de responsabilidade penal. Se entendermos, como Martínez Escamilla, que no caso dos pelos de cabra a finalidade da norma de cuidado (o dever de esterilização) abrange, de modo geral, o dever de evitar ou diminuir os riscos de contágio de enfermidades pela manipulação de ditos pelos, então esse critério fundamenta a relação de risco e justifica a imputação do resultado ao empresário que infringiu a referida norma de cuidado. Entretanto, se entendemos, como Corcoy Bidasolo , que a norma de cuidado corresponde ao dever de cuidado a ser observado no caso concreto, com conhecimento de todas as circunstâncias existentes (ex ante e ex post), então o conteúdo e a finalidade do dever de cuidado se limitariam ao âmbito da capacidade desta norma de efetivamente controlar ou evitar os riscos de contágio da enfermidade específica transmitida pela, até então desconhecida, bactéria, quando da manipulação dos pelos de cabra. Considerando que a esterilização convencional não era apta a evitar o específico contágio produzido, porque era desconhecida essa possibilidade, então esse dever não se circunscreve no âmbito do fim de proteção da norma; logo, não é possível demonstrar o nexo entre a criação do risco proibido e o resultado produzido, nem justificar a imputação do resultado ao empresário, porque a norma de cuidado no caso, ex ante aplicável, não tinha por finalidade evitar aquele tipo de contágio, nem, finalmente, o resultado produzido.
 
FONTE: Facebook

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