"A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade... Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real." Rui Barbosa



segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA E ÂMBITO DE APLICAÇÃO - PARTE I



Meus caros, seguem nossas reflexões sobre a imputação objetiva, cujo texto encontra-se em nosso Tratado, vol. 1, 17a ed., ja nas livrarias..

PARTE I
A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA E ÂMBITO DE APLICAÇÃO

Como lembra Mir Puig , todo tipo doloso requer certos requisitos mínimos na conduta externa, que devem ser estudados na teoria geral do tipo doloso — e que geralmente são comuns a todo tipo objetivo, inclusive aos crimes culposos. Porém, a imputação do tipo objetivo somente é um problema da parte geral quando o tipo requer um resultado no mundo exterior separado, no tempo e no espaço, da ação do autor. Nos crimes de mera atividade, como o de falso testemunho, de ameaça, de injúria, a imputação do tipo objetivo se esgota na subsunção dos elementos do tipo respectivo, que deve ser tratado na Parte Especial .


Como já afirmamos, a relação de causalidade não é o único elemento relevante para a imputação objetiva do resultado à conduta humana precedente. A teoria da imputação objetiva não tem, contudo, a pretensão de resolver a relação de causalidade, tampouco de substituir ou eliminar a função da teoria da conditio sine qua non. Objetiva não mais que reforçar, do ponto de vista normativo, a atribuição de um resultado penalmente relevante a uma conduta. Em outros termos, não pretende fazer prevalecer um conceito jurídico de imputação sobre um conceito natural (pré-jurídico) de causalidade, mas acrescentar-lhe conceitos normativos limitadores de sua abrangência. Com efeito, nos crimes de ação (os materiais), a relação de causalidade, embora necessária, não é suficiente para a imputação objetiva do resultado. Nos crimes comissivos por omissão, a imputação objetiva não requer uma relação de causalidade propriamente, mas apenas que o sujeito não tenha impedido o resultado quando podia e devia fazê-lo, em razão de sua condição de garante.

Enfim, a relação de causalidade não é suficiente nos crimes de ação, nem sempre é necessária nos crimes de omissão e é absolutamente irrelevante nos crimes de mera atividade. Portanto, a teoria da imputação objetiva tem espaço e importância reduzidos.

Para a teoria da imputação objetiva, o resultado de uma conduta humana somente pode ser objetivamente imputado a seu autor quando tenha criado a um bem jurídico uma situação de risco juridicamente proibido (não permitido) e tal risco se tenha concretizado em um resultado típico . Em outros termos, somente é admissível a imputação objetiva do fato se o resultado tiver sido causado pelo risco não permitido criado pelo autor . Em síntese, determinado resultado somente pode ser imputado a alguém como obra sua e não como mero produto do azar . A teoria objetiva estrutura-se, basicamente, sobre um conceito fundamental: o risco permitido. Permitido o risco, isto é, sendo socialmente tolerado, não cabe a imputação; se, porém, o risco for proibido, caberá, em princípio, a imputação objetiva do resultado.

A teoria da imputação objetiva pode ser vista, sob essa perspectiva, como uma evolução da ideia da causa juridicamente relevante, na medida em que dá um passo adiante, em relação à proposta referida por Mezger, e oferece critérios normativos para a delimitação da tipicidade objetiva. Por outro lado, a teoria da imputação objetiva pode ser vista como uma evolução da teoria da adequação, na medida em que aperfeiçoa o critério da previsibilidade objetiva em prol de uma melhor delimitação da conduta típica relevante. Apresenta-se, nesse sentido, como uma teoria capaz de abordar os requisitos valorativos necessários para aferir a tipicidade objetiva de uma conduta, sem incorrer na clássica confusão entre o plano causal ontológico e o plano normativo .

Para Martínez Escamilla, essa teoria hoje representa um contraponto ao método ontológico do finalismo e se estrutura a partir de considerações eminentemente valorativas, relacionadas com determinadas concepções de sistema penal, concretamente, com concepções funcionalistas . Quanto à sua origem, atribui-se a Larenz a primeira aproximação aos problemas tratados no âmbito da teoria da imputação objetiva , e a Honig e a Roxin o moderno entendimento dessa teoria , como uma teoria da imputação objetiva do resultado .

Para Roxin, “um resultado causado pelo agente somente pode ser imputado ao tipo objetivo se a conduta do autor criou um perigo para o bem jurídico não coberto pelo risco permitido, e se esse perigo também se realizou no resultado concreto” . Dessa forma, estabelece Roxin, os postulados básicos da teoria da imputação objetiva, gerando um amplo debate na doutrina que, apesar de aceitá--la em termos gerais, divergem quanto: a) aos critérios que devem integrar o juízo de imputação objetiva do resultado; b) ao conteúdo de cada um desses critérios; e c) no seu âmbito de aplicabilidade.

Vejamos, exemplificativamente, algumas dessas (as mais relevantes) divergências existentes. Na concepção de Roxin, a teoria da imputação objetiva estabelece três requisitos básicos para a imputação objetiva do resultado, que representam, em realidade, três grandes grupos de problemas: a) a criação de um risco jurídico-penal relevante, não coberto pelo risco permitido; b) a realização desse risco no resultado; e c) que o resultado produzido entre no âmbito de proteção da norma penal .

O primeiro requisito, (i) a criação de um risco jurídico-penal relevante, visa identificar se a conduta praticada pelo agente infringe alguma norma do convívio social, e pode ser valorada como tipicamente relevante. Concretamente, se se trata de uma conduta perigosa, idônea para a produção de um resultado típico, não coberta pelo risco permitido. Em caso afirmativo, pode-se dizer que a conduta representa a criação de um risco jurídico-penal proibido, sendo, nesse sentido, relevante para o Direito Penal. Em caso negativo, isto é, se a conduta praticada não é idônea para a produção do resultado típico, ou, sendo idônea, está permitida pelo ordenamento jurídico, então fica afastada a relevância típica da conduta, que não poderá sequer ser punida a título de tentativa. Uma vez constatada a relevância típica da conduta praticada, é necessário analisar se o agente pode ser responsabilizado pela prática de um crime consumado, ou seja, se está presente o segundo requisito, (ii) a realização do risco proibido no resultado. A responsabilidade pelo delito consumado deve ser inicialmente inferida pela constatação da relação de causalidade entre a conduta do agente e o resultado típico. Além disso, é necessário demonstrar se o resultado típico representa, precisamente, a realização do risco proibido criado ou incrementado pelo agente. Quanto ao terceiro requisito, (iii) âmbito de proteção da norma, trata-se de um limitador da imputação objetiva, que visa à interpretação restritiva dos tipos penais, de tal modo que, em determinados casos, seja possível negar a imputação do resultado, inclusive quando os outros dois requisitos estejam presentes. Como adverte Roxin , no momento de valorar se o resultado é a realização do risco não permitido, é necessário estabelecer uma correspondência entre a finalidade, o alcance da norma de cuidado (sob a perspectiva ex ante) e o resultado, de modo que não se pode imputar o resultado à conduta se a norma de cuidado era insuficiente ou inadequada para evitar o resultado finalmente produzido. Ou seja, apesar de a conduta gerar um risco tipicamente relevante, não amparado por um risco permitido, não haverá imputação se se verificar, ex post, que os cuidados exigidos, ex ante, não eram suficientes nem adequados para evitar o resultado desvalorado, na medida em que fatores imprevisíveis ou desconhecidos (ex ante) também interferiram na produção do resultado típico.

Sem embargo, para Wolfgang Frisch, as questões relacionadas com o risco proibido são parte da teoria do injusto e, como tal, não entram no âmbito da teoria da imputação objetiva, que estaria restrita a um marco de aplicação mais estrito, qual seja, o da determinação da relação entre a conduta típica e o resultado. Nas palavras desse autor, “a temática normativa da imputação objetiva do resultado começa unicamente quando se dá previamente resposta (na verificação do caso, afirmativamente) aos problemas normativos do risco proibido, referidos ao injusto do comportamento. Seu objeto não é a questão dos princípios em virtude dos quais devem ser determinados o risco proibido, ou os casos que devem ser considerados como exemplos de criação de um perigo aprovado ou desaprovado” .

Por outro lado, Jakobs propõe um desenvolvimento da teoria da imputação objetiva também distinto. Atribui, em princípio, uma finalidade similar à formulada por Roxin para a teoria da imputação objetiva. Com efeito, na concepção de Jakobs, essa teoria tem a missão de identificar “as propriedades objetivas gerais da conduta imputável” . Entretanto, opta por uma via metodológica diferente à de Roxin, para determinar os critérios de imputação objetiva, estreitamente vinculada à sua concepção funcional normativista do sistema penal. Essa concepção vem sendo duramente criticada pela doutrina especializada por conduzir a um juízo de valor eminentemente formal e abstrato da relevância típica da conduta, carente de um referente material estável e empírico contrastável, para fins de delimitação da conduta punível . Além disso, questiona-se o alcance que essa teoria assume na formulação de Jakobs, que pretende reinterpretar, em sua totalidade, o conteúdo e significado dos elementos que compõem o injusto penal, ultrapassando os limites da relevância típica de uma determinada conduta para projetar-se, inclusive, sobre o tratamento da autoria e participação no delito .

A teoria da imputação objetiva, a nosso juízo, tem grande utilidade para a delimitação da tipicidade nos crimes de resultado, isto é, para aqueles casos em que a descrição dos elementos do tipo exige que a consumação do delito somente ocorra com um resultado no mundo exterior separado, no tempo e no espaço, do comportamento que o precede (os denominados crimes materiais). Nesse âmbito, os critérios de imputação objetiva servem tanto para a delimitação da(s) conduta(s) penalmente relevante(s) como para a atribuição do resultado típico àquela(s) conduta(s) que se identifique(m) como relevante(s) para o Direito Penal, e apta(s) para a produção do resultado. Com essa configuração, estamos de acordo com Roxin, Jakobs, Martínez Escamilla, Mir Puig, entre outros, no sentido de que a teoria da imputação objetiva encerra um duplo juízo de imputação: (i) um juízo ex ante sobre a relevância típica da conduta, e (ii) um juízo ex post, sobre a possibilidade de atribuição do resultado típico àquela conduta.

Nos crimes de mera atividade, como o de falso testemunho, de ameaça, de injúria, entre outros, a imputação do tipo objetivo esgota-se no primeiro juízo de imputação, ou seja, uma vez que se constate que o risco proibido criado pelo comportamento do sujeito apresenta a idoneidade para ofender o bem jurídico protegido, isto é, com subsunção dos elementos do tipo respectivo, de acordo com os elementos descritos na Parte Especial .

E quais são, exatamente, esses critérios que, em linhas gerais, conformam o primeiro e o segundo juízos de imputação?

No nosso entendimento, o primeiro juízo de imputação (relevância típica da conduta) está diretamente vinculado à valoração da criação de um risco proibido. Vale advertir, desde logo, que as considerações sobre a criação de um risco jurídico-penalmente relevante não constituem uma descoberta da teoria da imputação objetiva. Em realidade, desde que Welzel destacou que o ilícito penal não poderia ser explicado somente como desvalor do resultado, e que a lesão ou exposição ao perigo de um determinado bem jurídico somente interessa se, previamente, se identifica uma conduta relevante para o Direito Penal, os estudiosos da dogmática penal vêm se preocupando com os requisitos que identificam a perigosidade da conduta ex ante e sua relevância típica, isto é, o desvalor da ação . O mérito da teoria da imputação objetiva consiste em haver sistematizado critérios para este fim desde uma perspectiva normativa, consolidando na doutrina o entendimento de que as valorações jurídico-penais não devem estar limitadas a considerações ontológicas. Cabe, sem embargo, destacar que, com a afirmação da necessidade de identificar a criação de um risco jurídico-penalmente relevante, somente estamos indicando o problema normativo que deve ser resolvido, e não, propriamente, os critérios que nos auxiliam na sua resolução. Com efeito, existe ampla discussão acerca de quais seriam esses critérios, bastando, por exemplo, comparar as diferenças existentes entre a postura de Jakobs e a de Roxin.
FONTE: Facebook

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