"A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade... Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real." Rui Barbosa



sexta-feira, 1 de junho de 2012

REVOGAÇÃO DE DECISÕES JUDICIAIS PELO LEGISLATIVO - PARTE I

Colunas

31 maio 2012
Senso incomum

Poder Legislativo não deve revogar decisões judiciais

O grande orador romano, Cícero, cunhou o emprego de uma expressão que, por muito tempo, representou o topos determinante da relação dos seres humanos com o seu passado: “historia magistra vitae” (A história é a mestre/professora da vida). Baseado em modelos helenísticos, ele afirmava que o orador é capaz de produzir um sentido de imortalidade para a história, articulando-a como instrução para a vida, mostrando para o seu auditório, a partir de uma coleção de exemplos vivenciados no passado, como é possível aprender com a experiência histórica. Nem é preciso dizer o que Marx e Hegel diziam sobre a história. A ave de Minerva só levanta voo ao anoitecer...

Trata-se, aqui, de perceber certo sentido pedagógico para a história; um sentido prático, efetivo, baseado na ideia de que é possível se instruir por meio dela. Em uma rápida síntese, poderíamos reduzir o conteúdo dessa afirmação em torno da intuição elementar de que os acertos do passado devem ser repetidos; os erros, evitados.
Pois no texto desta semana, sem embargo das inúmeras discussões que emergem do que foi dito acima, pretendo estabelecer contato com essa tradição que coloca a história nesse nível mais concreto (homenageio, aqui, os professores Martonio Barreto Lima, Gilberto Bercovici e Marcelo Cattoni), que nos possibilita captar aquilo que a experiência efetiva dos acontecimentos tem para nos ensinar a decidir melhor diante de todas as possibilidades que o futuro nos apresenta enquanto projetos.

Isso porque, um fato recente — a assombrar o Direito Constitucional brasileiro — pode nos colocar diante de uma situação em que teremos de saber se vamos adiante, com algum grau de acerto ou se, em contrapartida, iremos retroceder para o tempo do Estado de Polícia (Polizeistaat).

A análise aqui posta poderia ser realizada através de diversas perspectivas: poderia analisá-la, por exemplo, pela via da teoria do discurso habermasiana. Também poderia olhá-la através da lente do constitucionalismo garantista de Luigi Ferrajoli. Ou, à luz de qualquer teoria que trata da autonomia do direito e da força normativa da Constituição. Em todas essas hipóteses, a preocupação norteadora da investigação seria a questão democrática. Nestas reflexões, entretanto, opero com uma análise hermenêutica do problema (Crítica Hermenêutica do Direito), procurando encarar a questão desde aquilo que venho desenvolvendo enquanto teoria da decisão judicial.

Convém destacar, ainda a título introdutório, que a comunidade jurídica não tem dado a devida atenção à matéria, mantendo um distanciamento preocupante com relação à necessária crítica que deve ser desferida, já no seu nascedouro, à questão (por isso, repito a frase de uma das Colunas anteriores, em uma imitatio de Martin Luther King: não me preocupa o pensamento geral da comunidade jurídica; o que me preocupa é o silêncio dos bons!). Refiro-me à PEC 3/2011, aprovada no dia 25 de abril de 2012 pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Nos termos do projeto, quer-se dar nova redação ao inciso V do artigo 49 da CF que define as competências do Congresso Nacional. A alteração modificaria a competência atribuída ao Congresso de sustar atos normativos do Poder Executivo que extrapolem sua competência regulamentar ou os limites da delegação legislativa. O novo texto substituiria a expressão “Poder Executivo” por “Outros Poderes”, deferindo ao Legislativo a possibilidade de sustar atos decisórios do Poder Judiciário que adentrem na seara da inovação legislativa “criando” (sic) uma regra jurídica nova.

Efetivamente, nada é gratuito. Não é difícil perceber que esse sucesso inicial da referida PEC na CCJ da Câmara representa um sintoma da patologia que vem se alastrando no Judiciário brasileiro. Trata-se de um “troco” do Legislativo ao Judiciário... Sintomas, à evidência, do “estado de natureza interpretativo” que se estabeleceu no Judiciário de terrae brasilis, onde cada um decide como quer, inventam-se princípios, aplicam-se teses sem contexto, além da “escolha” que tribunais fazem acerca de “cumprir a lei ou não cumprir a lei”... Isso para dizer o mínimo.

É claro que isso nem sempre foi assim. Nossa história constitucional é marcada por longos períodos ditatoriais e alguns poucos suspiros democráticos. Se lermos, por exemplo, a literatura que trata da República Velha, podemos nos indagar: como foi que sobrevivemos?[1] O maior período de estabilidade institucional e funcionamento das instituições democráticas é o atual. Alvíssaras! Mas, é preciso dizer para as gerações mais jovens, nem sempre foi assim. Um famoso livro, escrito por Aliomar Baleeiro ainda na década de 1960, pode nos auxiliar nessa reflexão. O livro se chama O Supremo Tribunal Federal, esse Outro Desconhecido. O sugestivo título apontava para dois fatores internamente implicados: em primeiro lugar, ao descobrimento que o seu autor, ainda infante, teve desse importante órgão de nossa República. Nas eleições presidenciais de 1919, peleavam Rui Barbosa e Epitácio Pessoa. A Bahia, de Rui e Aliomar, estava em polvorosa e havia grande temor de que as autoridades do estado impedissem a manifestação e circulação dos correligionários políticos de Rui. Muitos familiares de Aliomar estavam entre essas pessoas. Um dia, a família do jovem Aliomar despertou festejante: o Dr. Rui havia conseguido, perante o Supremo Tribunal Federal, uma ordem de Habeas Corpus, que garantia a liberdade de expressão e a circulação de seus partidários políticos. Assim, o Supremo Tribunal Federal — até então um Outro Desconhecido — aparece para Aliomar como o garantidor dos direitos e das liberdades individuais.

O segundo fator, mais fácil de ser reconhecido, deve-se a intenção de Baleeiro de apresentar para a comunidade política esse Órgão que, na história brasileira, mantinha certa descrição institucional até 1988. De se dizer, até 1988 — com um frágil sistema de fiscalização de constitucionalidade e sem efetiva democracia — o STF desempenhava um papel, até certo ponto, coadjuvante no cenário político nacional. No nosso contexto atual, a realidade é bem distinta. O STF protagoniza, diuturnamente, questões que afetam interesses políticos nacionais. Já não pode ser um “Outro Desconhecido”; mais do que isso, o Supremo Tribunal é hoje um “ex-desconhecido”. E isso decorre, em princípio — e há que se reconhecer isso — de um fator de consolidação de nossa democracia. Sendo mais claro: em uma democracia constitucional é necessário que exista um Judiciário forte, que funcione como efetivo garantidor dos direitos fundamentais e das regras do jogo político que são estatuídas pela Constituição. Nesse sentido, basta ver o que escreve Alexis de Tocqueville, em seu A Democracia na América, sobre as funções da Suprema Corte e a democracia estadunidense.

Nos últimos anos o STF tem participado, cada vez mais incisivamente, da vida política nacional. Isso deveria ser alvissareiro uma vez que — como veremos a seguir — a existência de um Poder Judicial independente que funcione como efetivo garantidor dos direitos fundamentais é um marco definidor de um Estado Democrático de Direito. Vale dizer, em uma democracia constitucional, o Judiciário tende a aparecer mais porque as demandas pela concretização de direitos (civis, políticos e sociais) são efetivamente reconhecidas pelo Estado e a sua proteção cabe, efetivamente, ao guardião da Constituição.

Todavia, em diversos casos, o STF adentra nas veredas da política proferindo decisões que acabam sendo, numa análise rigorosa, estritamente políticas (e, com isso, indiretamente incentiva as demais instâncias a fazerem o mesmo). Um aviso: por certo que o papel de Tribunal guardião da Constituição desempenha uma atividade que, numa perspectiva mais geral, encontra uma justificativa política. Quando afirmo e defendo, a partir de Dworkin e da matriz hermenêutica, a autonomia do direito e a necessidade de que as decisões judiciais sejam decisões de princípios e não de política, não quero — e nunca quis — afirmar uma separação exclusivista entre direito e política. Como afirma Dworkin em seu Levando os direitos a sério, a justificativa mais geral e abrangente para o direito é política uma vez que, dessa justificativa, deriva a “doutrina da responsabilidade política” que rege a jurisdição constitucional. Nos termos da doutrina da responsabilidade política, os juízes têm para si o dever de, no momento da decisão judicial, decidir conforme o direito segundo argumentos de princípios e não argumentos de política.
 
 
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.

Revista Consultor Jurídico, 31 de maio de 2012

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