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31 maio 2012
Senso incomum
Poder Legislativo não deve revogar decisões judiciais
Repitamos isso, com vagar: argumentos de princípios e não de política! Esse é o ponto fundamental da questão: a responsabilidade política dos juízes se materializa na produção de decisões segundo o direito (na coluna passada, que pode ser acessada aqui, expliquei o que entendo por direito). Insisto: juiz não escolhe; juiz decide! Explicitando melhor: discussões que envolvem projetos futuros, bem-estar social, consequências que resultaram da aplicação do direito em questão, não são decisões que pertencem à esfera do Judiciário, mas que devem ser tomadas pelos meios políticos adequados (legislativos e/ou executivos). No Judiciário devemos levar o direito a sério, decidindo segundo argumentos de princípios.
Assim, é de se perguntar: qual o argumento de princípio que sustenta a decisão exarada pelo Pretório Excelso no julgamento da ADI 4.029/DF que julgava a constitucionalidade da Lei 11.516/2007 resultante da conversão da Medida Provisória 366/2007 que criou o “Instituto Chico Mendes”? Na ocasião, o STF reconheceu que a medida não havia cumprido o que determina o parágrafo 9º do artigo 62 da CF (submissão a uma comissão mista de deputados e senadores para avaliar o cumprimento dos requisitos da urgência e relevância). Na mesma ocasião, verificou-se, ainda, que muitas outras medidas provisórias (estima-se que mais de 400) haviam sido convertidas em lei sem que o parágrafo 9º do artigo 62 tivesse sido observado no decorrer do processo legislativo. Logo, haveria aqui uma enxurrada de leis que tiveram origem pelo procedimento de conversão de medidas provisórias, vigendo entre nós em regime de flagrante inconstitucionalidade formal. A decisão do Supremo Tribunal, apesar de reconhecer a inconstitucionalidade da Lei 11.516/2007, operou uma modulação de efeitos pro futuro, para que os efeitos da pronúncia de nulidade viessem a ocorrer depois de 24 (vinte e quatro) meses...! A decisão atingiu, ainda, outras tantas leis que tiveram o mesmo vício de procedimento que acometia a lei do instituto Chico Mendes. Nos termos do voto do ministro relator Luiz Fux: “No que atine à não emissão de parecer pela Comissão Mista parlamentar, seria temerário admitir que todas as leis que derivaram de conversão de Medida Provisória e não observaram o disposto no art. 62, § 9º, da Carta Magna, desde a edição da Emenda 32 de 2001, devem ser expurgadas ex tunc do ordenamento jurídico. É inimaginável a quantidade de relações jurídicas que foram e ainda são reguladas por esses diplomas, e que seriam abaladas caso o Judiciário aplique, friamente, a regra da nulidade retroativa”.
Vê-se que, neste caso, o Judiciário decidiu segundo padrões estritamente políticos, a partir de argumentos utilitaristas/consequencialistas. No limite, é possível dizer que a discricionariedade judicial chegou a tal magnitude que, para todos os efeitos, foi suspensa a vigência do parágrafo 9º do artigo 62 (estado de exceção?), na medida em que medidas provisórias convertidas em lei sem sua efetiva observância foram convalidadas pelo referido acórdão, caso em que a Corte se transformou em uma espécie de poder constituinte derivado de fato, alterando formalmente o texto constitucional. Alguém dirá: e querias que o STF fizesse o quê? A resposta é simples: as decisões do STF valem também por seu aspecto simbólico, às vezes mais do que real... O que quero dizer é que os efeitos colaterais desse tipo de decisão podem ser perniciosos à democracia, coisa que, no mínimo, deveria ter sido frisada, com letras garrafais, nos votos dos ministros. Mas, não vi nada disso. Não vi qualquer “blindagem” contra a proliferação do vírus.
Há casos em que a discussão envolve questões de princípios — reconhecimento de direitos — só que os fundamentos lançados pelos ministros em seus votos apontam para o fato de que a decisão foi pautada em argumentos de política e não de princípios. Veja-se o caso da ADI 4.424/DF, que questionava dispositivos da chamada “Lei Maria da Penha”. No caso, o STF alterou – via interpretação conforme a Constituição (na verdade, o correto teria sido utilizar a Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung, ou seja, uma nulidade parcial sem redução de texto) – a ação penal do crime de lesão corporal tutelado pela lei, estabelecendo que, nos casos em que o crime for cometido no âmbito da violência doméstica, a ação penal seria pública incondicionada (e não condicionada à representação, como se previa anteriormente). Nesse caso, não estou preocupado — para efeitos destas reflexões — com o mérito do julgamento (se existia ou não argumentos de princípio a sustentar essa sentença interpretativa da Corte). Preocupa-me, sobremodo, o fato de que, em inúmeros votos, os ministros mencionaram o fato de que as estatísticas sobre a violência doméstica são “alarmantes”, estando a necessitar de um meio mais rigoroso de persecução criminal. Pergunto: manejar estatísticas e planejar ações futuras não seria tarefa pertencente ao âmbito da política legislativa? Seria esse um argumento jurídico suficiente para adicionar um sentido à lei?
Também no emblemático julgamento da ADI 3.510/DF — no interior do qual o atual presidente do tribunal, ministro Carlos Ayres Britto, chegou a afirmar que o STF teria se tornado uma “casa de fazer destinos” — os mais diversos votos enveredaram para a discussão de questões que são alheias à atividade de concretização de direitos que a função contramajoritária da Corte Constitucional comporta. No caso, o próprio voto do ministro relator já citado acima, questiona — numa perspectiva ontológica clássica até — o que é a vida, ou seja, uma espécie de reificação do conceito de vida. Anota-se que, nos termos da CF, os juristas e o Judiciário podem divergir sobre o direito a vida, seu exercício, sua plenitude, etc. Entretanto, parece-me exagerado deixar a uma Corte — composta por 11 ministros — a definição do que seja a vida. Esse tipo de discussão envolve vários atores sociais, de várias especialidades que não podem ser submetidas ao estrito espaço do Poder Judiciário. De se perguntar: se a decisão incorporasse no dispositivo uma definição de vida, esta faria coisa julgada? Estaria a comunidade científica vinculada à definição determinada pelo Judiciário? E poderia, aqui, ainda, apresentar um elenco considerável de questões de política decididas pelo STF. Todos sabem.
O STF não tem culpa de essas questões a ele serem submetidas. Isso é óbvio. O problema é que não conseguimos, ainda, fazer um diagnóstico acerca das razões pelas quais isso vem sendo assim. De certo modo, o STF acaba tendo que atender às demandas de vários segmentos, como que a institucionalizar uma espécie de “coalização político-judiciária”, repetindo, no mínimo como metáfora, o modelo de presidencialismo de coalização do Poder Executivo: veja-se, nesse sentido, os diversos grupos que leva(ra)m as suas reivindicações ao Tribunal Maior — demarcação de terras indígenas, a questão das cotas, a questão do aborto, as questões homoafetivas, embriões, demandas coletivas de saúde, etc. Suas “reivindicações” foram atendidas pelo Judiciário (e não pelo Executivo ou o Legislativo). Há, nisso, porém, um ponto problemático: mesmo atendendo a todas essas demandas, por assim dizer, populares-sociais, a Suprema Corte chega às vésperas do julgamento do Mensalão ainda com problemas que, de um modo ou de outro, arranham a sua legitimidade (discussão sobre rito, pressões acerca da conveniência da data de julgamento, risco de prescrição — este considerado o mais sério problema, além do velho problema, já não relacionado ao processo do Mensalão, decorrente das ações penais originárias, que até hoje resultaram em apenas uma condenação, etc).
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
Revista Consultor Jurídico, 31 de maio de 2012
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