Senso incomum
Poder Legislativo não deve revogar decisões judiciais
Por isso tudo, é preciso separar alho de bugalhos. Se é certo que a atividade jurisdicional deve ser exercida segundo uma rigorosa fundamentação e se é certo que é necessário problematizarmos, pela via da teoria do direito, os limites interpretativos de modo a construir anteparos para a atividade jurisdicional, também é igualmente verdadeiro que esses limites não podem — de forma alguma — ser feitos por um outro Poder da República, como que a repristinar um perigoso “controle político” do poder judiciário, como o constante no art. 96 da Constituição de 1937 (a nossa “polaca”). O relevante controle das decisões judiciais — que, registre-se, é uma necessidade democrática — deve ser hermenêutico e de forma alguma poderá ser aceito um controle político das decisões.
Voltemos a Cícero: Historia magistra vitae. A experiência do constitucionalismo — que é um processo histórico com raízes no século XI, permeado de lutas sociais e teóricas — nos legou muitas coisas: a independência do Parlamento, as limitações ao poder do Rei e a definição de Estado de Direito (Rechtstaat), são algumas dessas importantes contribuições. Esse mesmo processo histórico — e, insisto nisso, o constitucionalismo é essencialmente histórico — ofereceu um reforço que acentuou ainda mais a ideia de Estado de Direito, a partir da afirmação de um Estado Constitucional (Verfassungstaat). Quando falamos em limitação do poder e democracia, um grande ensinamento do passado nos diz que o elemento central, para o Estado de Direito (ou, se preferirem, Estado Constitucional) é exatamente a independência do Poder Judiciário.
Sim, a independência do Poder Judiciário é uma conquista democrática. Parece óbvio isso, mas há que se comunicar esse óbvio ao Parlamento. Conquista, sim, porque não foi o resultado de uma autorização cartorial. Muito mais do que isso, por oito séculos a humanidade lutou para construir os mecanismos de limitação de poder com os quais hoje estamos habituados. Para enfrentarmos os perigos de um governo dos juízes ou de uma juristocracia, precisamos de uma consistente teoria do direito e agentes jurídicos aptos a trabalharem na construção de bons argumentos e na desconstrução dos argumentos ruins.
Sendo bem mais claro: em hipótese alguma, a juristocracia pode ser vencida pela instituição de uma espécie tardia de Polizeistaat. Nesse caso, o problema apenas mudaria de endereço na praça dos três poderes: do Poder Judiciário em direção ao Congresso Nacional. Ou seja, se o ativismo do Poder Judiciário se mostra perigoso ao ponto de o Poder Legislativo pretender limitá-lo via EC 3, não é a simples transferência do polo de tensão para o Poder Legislativo que resolverá a “questão da democracia”. Ao fim e ao cabo, a PEC 3, apontando de volta para o século XIX, não merece mais do que uma onomatopéia que é dita pressionando a língua entre os dentes.
Numa palavra final: para resolver os problemas do ativismo judicial, da vontade de poder (Wille zur Macht) ou do voluntarismo, não precisamos voltar ao hermetismo do século XIX, como querem os parlamentares que aprova(ra)m a PEC 3 na CCJ. Para tirar a água suja, há que se cuidar para não jogar a criança junto... E nem vamos resolver o problema da traição tirando o sofá da sala... Não podemos nos comportar como o sujeito que, tendo perdido o relógio, pôs-se a procurá-lo debaixo de um poste de luz, longe do lugar da perda...porque ali era mais fácil!
Podemos fazer melhor do que isso. Mas, para tanto, necessitamos, primeiro, entender que o direito é um fenômeno complexo (insisto, pois, na luta contra os “simplificadores” e os adeptos de argumentos prêt-à-porter, prêt-à-penser e prêt-à-parler). Para isso, temos que estudar o processo histórico e como se forjou o positivismo, respondendo perguntas como “o que é isto, um paradigma”, “o que é isto, a autonomia do direito”, “o que é isto, o solipsismo judicial”, “o que é isto, o discricionarismo”... E, assim, entender que a pretensão de controlar as decisões a partir de uma teoria da decisão, não é, nem de longe, proibir a interpretação... Autores que dedicaram a vida a estudar esse fenômeno e a criticar o solipsismo (graças ao qual se espalha o mantra de que “sentença vem de sentire” e que a decisão é um ato de vontade), como Dworkin, Habermas, Gadamer, Luhmann, para falar apenas destes, não podem ser tidos como ingênuos, imbecis, mal-intencionados, autoritários ou, quiçá, “conspiradores contra a independência do poder judicial”... Em alguma coisa essa gente está(va) certa, pois não? E não consta que o direito esteja blindado às teorias sofisticadas como a desses autores (na verdade, o que há de melhor em termos de teoria do direito passa, indubitavelmente, por esses autores). Peço, pois, que lhes sejam dadas ao menos algumas migalhas de vossa confiança. Sim, peço um crédito de confiança. Não a mim, mas a eles!
[1] Sugiro, desde logo, Fogo Morto, de José Lins do Rego.
[2] Um esclarecimento de caráter universal para o sentido do limite e o limite do sentido desta Coluna: não tenho a pretensão de detalhar soluções dos problemas que aponto. A Coluna não se destina a ser a extensão de uma sala de aula. As indicações de leitura que faço são exatamente para suprir essa (inexorável) lacuna. Outra coisa: ela, a Coluna, tem o nome de “senso incomum” e não “senso comum”. Portanto, que o leitor não espere que a Coluna resolva questões de concurso público... Na verdade, a Coluna serve para criticar esse imaginário prêt-à-porter que se formou no ensino jurídico e nas práticas jurídicas. Por isso, em breve dedicarei uma Coluna para falar sobre o “senso comum” e imaginário dos juristas.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
Revista Consultor Jurídico, 31 de maio de 2012
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