"A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade... Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real." Rui Barbosa



sábado, 16 de junho de 2012

DIREITO PENAL: CRÍTICA A UMA DISCUSSÃO INAPROPRIADA SOBRE A NATUREZA DO CAUSALISMO E DO FINALISMO

Há uma discussão inapropriada sobre a natureza do causalismo e do finalismo, de um lado, acoimados de "ontológicos, e do neokantimso e do funcionalismo, de outro, tidos como "deontológicos". Para colocar as coisas nos devidos lugares, observo o seguinte:


O causalismo não é ontológico. Em primeiro lugar, a ontologia não trabalha com a categoria da causalidade, mas, sim, com a categoria do "ser", ou seja, com os princípios gerais dos entes, de todos os elementos da natureza ou da vida normativa. Claro, a causalidade pode constituir elemento de uma categoria tida como resultado de um juízo sintético a priori, mas isso não a transforma em elemento ontológico.

Kant considerava a causalidade como uma categoria dos objetos, assim resultante de um juízo sintético a priori, mas, de qualquer forma, apreensível, a partir de um primeiro momento, como objeto de observação, ou seja, da experiência, e depois compreendido como objeto daquele juízo.

Em segundo lugar, se uma teoria está baseada na causalidade, ela não pode ser ontológica, mas empírica, porque o fenômeno da causalidade é aferido pela experiência. David Hume, o grande empirista inglês e, praticamente, o grande sistematizador moderno da teoria da causalidade, já dizia que a noção de causa deve seguir o princípio da regularidade, mas isso não implica que a noção de causa seja correta, ela é apenas o resultado de um dado que, sob certas circunstâncias, se repete sob um juízo de probabilidade.

É um erro crasso considerar o causalismo como ontológico. Isto porque, como disse, a ontologia não trabalha com os juízos provisórios de probabilidade ou regularidade; a ontologia estabelece princípios gerais que devem ser observados por todos, por todas as teorias, por todos os conceitos, princípios esses que não decorrem da experiência. O finalismo é ontológico, porque parte do princípio, autoevidente, da finalidade, como categoria lógico-objetiva da conduta.

A finalidade, como elemento nuclear da ação, não precisa ser comprovada empiricamente. Toda conduta é final. Para o causalismo, nem toda conduta é causal, pode ser ou não ser, conforme a corrente causal que se adote. A omissão, por exemplo, para alguns causalistas não é causal, mas para o finalismo é final. A qualidade final da omissão não é comprovável, é tida como inerente à própria omissão, tomada como ação.


Já no que toca ao neokantismo, qualquer assertiva depende da escola. A Escola de Marburg trabalha com a noção de causalidade. Essa escola explora o lado empirista de Kant. A Escola de Baden parte do pressuposto de que o método é que constrói a realidade. Neste último caso, pode-se dizer que seja deontológico. O neokantismo de Kelsen é deontológico, mas o neokantismo de Max Ernst Mayer é empírico. A própria noção de normas de cultura é o resultado de uma investigação empírica.


Quanto ao funcionalismo, não é ontológico, nem deontológico. É uma mistura, porque contém, conforme a corrente, elementos empíricos ou elementos normativos. No que toca ao lado empírico, quando elevado a uma categoria principal, estar-se-á diante do chamado funcionalismo positivista.
 
A classificação ontológico e deontológico é falha; é uma classificação insuficiente. Poder-se-ia pensar que o funcionalismo seria semântico, quando trabalhasse somente com a teoria da linguagem; ou epistêmico, quando se aventurasse a incluir a noção de sistema a par do processo de interação social. Daí também o nome de interacionismo simbólico, um moderno ramo do funcionalismo. Neste último caso, o processo de descoberta da verdade dos fatos tem fundamentos empíricos. Há críticos que consideram que o funcionalismo é falho porque afirma uma coisa, como se fosse resultante de uma investigação empírica, quando não tem provas dessa afirmação. Essa é a grande crítica que se fez a Mead, aliás, um notável intelectual.


Dizer que o funcionalismo é deontológico é desconsiderar todo seu arcabouço. Desde sua origem, no âmbito da sociologia, com a obra de Emile Durkheim, "A divisão do trabalho social", até nossos dias, o funcionalismo quis encontrar a explicação para os fenômenos sociais e ainda justificar a existência de normas de conduta. A justificação de normas de conduta está, ademais, amparada em elementos empíricos, que dão sedimento à sua elaboração. Durkheim, por exemplo, queria justificar as normas penais, atendendo à necessidade de fortalecer a coesão social, já manifestada na indignação diante do fato criminoso.
 
O crime, dado empírico, funcionaria como um elemento de coesão de todos os membros da sociedade; o direito nada mais faria do que encampar essa manifestação conjunta contra o crime, proibindo as ações criminosas. Nesse dinamismo, o crime teria um papel decisivo na formação da sociedade, pois por meio dele é que todas as pessoas poderiam perseguir fins comuns.

No funcionalismo moderno, a antiga regra da coesão social é substituída pelas categorias de expectativas cognitivas e normativas. As expectativas normativas são asseguradas pelas normas de direito e só podem subsistir se, também, tiverem por base expectativas cognitivas. Se eu recebo a informação de que um determinado barbeiro corta muito bem o cabelo e vou até ele em face dessa informação, essa minha conduta está orientada por uma expectativa cognitiva. Se ele me corta mal o cabelo, fico frustrado nessa expectativa. Mas o direito não pode obrigar, normativamente, que eu sempre corte o cabelo com aquele barbeiro, mesmo que ele seja o melhor barbeiro do mundo, porque isso implicaria violar também a liberdade de escolha de cada um e nem pode obrigar que o barbeiro corte bem o cabelo. Agora, o direito pode assegurar que todos possam exercer sua liberdade (elemento empírico) de ir aos barbeiros que quiserem. Aqui, o normativo encampa o empírico. Se, por exemplo, vou ao barbeiro, mas ele não pode cortar meu cabelo, porque suas tesouras foram furtadas, então, sou frustrado não apenas na minha expectativa cognitiva (de que ele me corte bem o cabelo), mas ainda na expectativa normativa, que se aplica a todas as pessoas, de que o barbeiro conserve suas tesouras para poder ofertar seus serviços a qualquer um que o procure. Mas a conservação das tesouras deve ser vista não apenas pelo lado do direito de propriedade (elemento normativo), senão também pelos poderes fáticos de disposição (elemento empírico). Dessa estória toda, vê-se que a chamada "deontologia" está muito mal posta distante da realidade do funcionalismo.

Daí não se poder dizer que o funcionalismo seja deontológico. Há, na verdade, uma grande confusão entre funcionalismo e hegelianismo. Este último, também, muito mal apreciado e deturpado. Mas isso é para outra estória. Na Alemanha, afirmar que o causalismo e o finalismo seriam ontológicos e que o funcionalismo seria deontológico soa um grande sacrilégio.


O causalismo, assim chamado por Welzel como ironia, tem suas raízes no empirismo e no positivismo do século XIX.
 
A questão fundamental de conceber a conduta a partir da causalidade decorre de uma metodologia centrada nas alterações materiais do mundo em função de fatores intervenientes sobre os fenômenos.

Geralmente, tem-se a impressão de que a causalidade constituiria um dado irretorquível da natureza, mas essa impressão é falsa. Aqueles que trabalham a causalidade sabem que há uma diferença substancial entre as ligações naturais das condições para com os eventos, de um lado, e a explicação disso, de outro lado.

A teoria causal que teve e ainda tem influência no direito penal postula que a noção de conduta só pode ser explicada pela noção de causa. Isso não significa que a causa seja uma condição inerente à conduta.

Essa mesma ideia de que a explicação da conduta se faz pela noção de causa integra a metodologia comum da ciência, que busca uma explicação para os fenômenos conforme alguns critérios próprios ou adequados.

Se formos verificar como a física explica os fenômenos naturais, poderemos concluir que, conforme os critérios adotados e ainda diante do objeto da investigação (o macrocosmos ou o microcosmos), essa explicação varia muito, desde a mecânica de Newton (ainda apropriada para os macrocosmos) e a teoria quântica (usada na análise dos microcosmos), ou ainda a teoria da relatividade no âmbito da cosmologia em geral. Nenhuma dessas teorias pretendeu dizer que todos os fenômenos têm elementos imutáveis comuns.

A ontologia, por seu turno, quer encontrar nos fenômenos elementos imutáveis a priori, a partir da noção de essência. O finalismo, em oposição ao causalismo, afirma que todas as condutas são finais, porque a finalidade está inserida diretamente no ser. Essa concepção foi retomada por Welzel com base na ética aristotélica e depois no idealismo alemão. Quando Welzel formulou sua teoria, várias críticas lhe foram endereçadas; a principal delas: a finalidade como dado ontológico é indemonstrável e não serve para uma ciência que busca uma confrontação, como é o direito penal; ademais, outros autores, entre eles Roxin, deram elementos seguros para afirmar, em contraposição a Welzel, que nem todas as condutas são finais; a neurociência vem comprovando que muitas condutas não se vinculam a qualquer finalidade, ou seja, empiricamente não existe base para essa afirmação finalista.


Espero que, com isso, se possa deixar em paz o causalismo.

 
* Juarez Tavares. Doutor e Mestre em Direito, Pós-doutor no Institut für Kriminalwissenschaften und Rechtsphilosophie da Universidade de Frankfurt am Main, Professor Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professor convidado das Universidades de Buenos Aires, Frankfurt e Sevilha (Pablo d'Olavide. Foi membro de várias comissões de reforma do código penal e da legislação penal brasileira. Tem incorporado em suas obras uma concepção bastante crítica do direito penal. A partir de suas finas observações às teorias tradicionais do delito, como a teoria causal-naturalista, a teoria finalista, a teoria social da ação e as teorias funcionais, assinala uma orientação próxima à Escola de Frankfurt, com base na teoria do agir comunicativo de Habermas, mas corrigida segundo postulações da filosofia analítica e das doutrinas deslegitimadoras do poder punitivo, como as do interacionismo simbólico e do neomarxismo. É membro do Ministério Público Federal desde 1982. É Subprocurador-geral da República desde 2007.

FONTE: Facebook

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