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31 maio 2012
Senso incomum
Poder Legislativo não deve revogar decisões judiciais
Enfim, todas essas questões apontam para um acentuado protagonismo do STF no contexto político atual. Nos termos propostos Ran Hirschl (Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of the New Constitucionalism), esses exemplos são demonstrativos de que nosso grau de judicialização atingiu a mega política (ou, a política pura, como o autor gosta de mencionar). Por certo que este fenômeno não é uma exclusividade brasileira. Há certa expansão do Poder Judiciário a acontecer, em maior ou menor grau, em um cenário mundial. O próprio Hirschl apresenta situações nas quais as decisões, tradicionalmente tomadas pelos meios políticos, acabaram judicializadas, como no caso da eleição norte-americana envolvendo George W. Bush e Al Gore; a decisão do Tribunal Constitucional Alemão sobre o papel da Alemanha na Comunidade Europeia, e o caráter federativo do Canadá.
Todos esses fatores deveriam produzir uma autorreflexão — uma espécie de catarse — por parte do Poder Judiciário sobre as suas decisões. É por isso que insisto: precisamos desenvolver/implementar uma Teoria da Decisão Judicial. Urgentemente. E, antes que alguém critique a falta de soluções, quero dizer que, em Verdade e Consenso, proponho uma Teoria da Decisão. Esse é o projeto da Teoria do Direito contemporânea que responde à necessidade de se construir anteparos para a autoridade judicante, na perspectiva de tornar mais democrático o Poder Judiciário. Na verdade, a intensidade da judicialização da política (ou de outras dimensões das relações sociais) é a contradição secundária do problema. A grande questão não é o “quanto de judicialização”, mas “o como as questões judicializadas” devem ser decididas. Este é busiles. A Constituição é o alfa e o ômega da ordem jurídica. Ela oferece os marcos que devem pautar as decisões da comunidade política. Uma ofensa à Constituição por parte do Poder Judiciário sempre é mais grave do que qualquer outra desferida por qualquer dos outros Poderes, porque é ao Judiciário que cabe sua guarda.
Nesse contexto, aproveito o ensejo dessa discussão para esclarecer uma dúvida que cerca os leitores de minha obra. Como sintoma, cito um Congresso realizado além-mar, em que um ex-ministro do STF chegou a dizer que minha teoria seria uma “proibição de os juízes interpretarem as leis” (sic). Ora, ora (e ora!). Indago: fosse eu um defensor do positivismo exegético (sintático, primitivo ou paleojuspositivismo — vejam os diversos nomes que essa “coisa” foi adquirindo), não deveria eu, por coerência, defender a PEC 3/2011? Elementar. Claro. E fácil. Afinal, o Legislativo, como no exegetismo francês do século XIX, é que passaria a cuidar da perfeita obediência à “letra da lei”...! Pois, então, que de agora em diante fique bem claro que não há resquícios de exegetismo em minha obra (alguns chegam a me acusar de “originalista” – sic [e sic] – ao modo norte-americano).
Vou deixar isso mais claro, na “forma da lei e da Constituição”. Com efeito, para um exegeta, certamente seria uma tarefa possível de ser levada a cabo pelo Legislativo a análise da validade das decisões judiciais, na medida em que a aplicação seria um processo mecânico, derivado da interpretação que o órgão judicante — previamente — faz do direito legislado. Bastaria identificar em que lugar o Judiciário deixou de proceder mecanicamente para corrigir o “erro” identificado... e, bingo, alterar-se-ia a decisão (nem quero falar aqui do problema da subsunção, na medida em que tem muita gente que ainda acredita que “casos fáceis se resolvem por subsunção” — sic — e “casos difíceis por ponderação” — sic). Todavia, na hermenêutica, sabemos, de há muito (mas de há muito tempo mesmo), que a interpretação é um ato construtivo. No campo hermenêutico, qualquer iniciante que tenha sobrevivido à mediocridade do senso comum, sabe da existência da ultrapassagem da Auslegung (reprodução de sentido) para a Sinngebung (atribuição de sentido). Deriva ela da compreensão, que é um existencial, cuja função é abrir para o intérprete a possibilidade da interpretação.
Sim, não interpretamos para compreender. Ao contrário, compreendemos para interpretar. Também a interpretação não acontece em tiras (as três subtilitas — intelligendi, explicandi e aplicandi — estão superadas). Ela se manifesta na applicatio (aplicação). Por isso, fundamentação e decisão são co-pertencentes. Ninguém fundamenta primeiro para depois decidir, simplesmente porque, no momento em que decide, já aconteceu a fundamentação. Esse é o círculo hermenêutico (hermeneutische Zirkel), que quer dizer que, de algum modo, o intérprete sempre está à frente de si mesmo, porque a sua condição de existente antecipa sentidos. Definitivamente, a interpretação não é um ato de vontade. Mas, não é mesmo. A partir da hermenêutica, enfim, da Crítica Hermenêutica do Direito, nem de longe é possível dizer isso.
Sigo. O “controle” das decisões é um controle que se opera hermeneuticamente. Aquele que interpreta deve (de)mo(n)strar que sua construção é a melhor segundo o direito da comunidade política. Aqueles que são destinatários da interpretação, por sua vez, têm o dever de questioná-la, apontando os fracos argumentos e as construções mal alicerçadas. Essa é a tarefa que venho chamando, há algum tempo, de “constrangimento epistemológico”, cujo ator jurídico fundamental é a Doutrina. Por isso que, em hipótese alguma, podemos admitir uma doutrina que, diante das decisões dos mais diversos tribunais, assume uma postura de “imparcialidade”, apenas descrevendo as posições que estão na última moda, sem questionar, na sua raiz, os argumentos apresentados pelo Poder Judiciário — na verdade, isso nem é imparcialidade; é, sim, servilismo! Sendo mais claro: a doutrina deve doutrinar!
Outro ponto absolutamente fundamental desse controle hermenêutico das decisões é a exigência de que elas sejam proferidas de forma consistente, segundo critérios de integridade da jurisprudência. É absolutamente inadmissível que, em um dia, o STJ entenda (defina?) o princípio da insuficiência de um modo (negando REsp em um caso de furto de R$ 84) e, não muito depois, explicite-o de outro modo (trancando, via Habeas Corpus, uma ação penal em uma sonegação de tributos de mais de R$ 3 mil); ou que uma Turma daquela Corte afirme a validade do artigo 212 do CPP e outra a negue, sem qualquer menção à jurisdição constitucional. Como é possível que um tribunal negue a validade de uma lei votada democraticamente sem utilizar — e fixo-me na questão do princípio-sistema acusatório — uma argumentação constitucional? Trata-se de uma exigência de equanimidade (fairness, como quer Dworkin), no sentido de que todos os cidadãos recebam tratamento igualitário quando buscarem a tutela jurisdicional. É o mínimo que se quer em uma democracia.
E como se faz isso? Trabalhando com algo que se chama de “Teoria da Decisão”. Nesse sentido, permito-me aqui, mais uma vez — até porque aqui não há espaço para desenvolver amiúde uma questão tão complexa[2] — remeter os leitores interessados nesta discussão para o meu Verdade e Consenso, assim como para livros como Decisão Judicial e o Conceito de Princípio, de Rafael Tomaz de Oliveira, Levando o Direito a Sério, de Francisco Borges Motta, Crítica à Aplicação de Precedentes no Direito Brasileiro, de Mauricio Ramires, Fundamentos para uma Compreensão Hermenêutica do Processo Civil, de Adalberto Narciso Hommerding, Elementos de uma Teoria da Decisão Judicial, de Orlando Faccini Neto e Hermenêutica Jurídica Heterorreflexiva, de Walber Araujo Carneiro, todos críticos em relação ao ativismo e à discricionariedade, demonstrando uma preocupação com o controle das decisões judiciais, a partir daquilo que hoje é chamado de CrÍtica Hermenêutica do Direito.
(Continua...)
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
Revista Consultor Jurídico, 31 de maio de 2012
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