"A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade... Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real." Rui Barbosa



terça-feira, 24 de abril de 2012

DELAÇÃO OU TRAIÇÃO PREMIADA ?



  • DELAÇÃO OU TRAIÇÃO PREMIADA: FAVOR LEGAL MAS ANTIÉTICO

  • Delação premiada consiste na redução de pena (podendo chegar, em algumas hipóteses, até mesmo a total isenção de pena) para o delinqüente que delatar seus comparsas, concedida pelo juiz na sentença final condenatória, desde que sejam satisfeitos os requisitos que a lei estabelece. Trata-se de instituto importado de outros países, independentemente da diversidade de peculiaridades de cada ordenamento jurídico e dos fundamentos políticos que o justificam.

  • A Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90), em seu art. 7º, introduziu um parágrafo (§ 4º) no art. 159 do Código Penal, cuja redação estabelecia uma minorante (causa de diminuição de pena) em favor do co-autor ou partícipe do crime de extorsão mediante seqüestro praticado por quadrilha ou bando que denunciasse o crime à autoridade, facilitando, assim, a libertação do seqüestrado. Dessa forma, premiava-se o participante delator que traísse seu comparsa com a redução de um a dois terços da pena aplicada. Por essa redação, para que fosse reconhecida a configuração da cognominada “delação premiada” era indispensável que a extorsão mediante seqüestro tivesse sido cometida por quadrilha ou bando e que qualquer de seus integrantes, denunciando o fato à autoridade, possibilitasse a libertação da vítima.

  • Posteriormente, a Lei n. 9.269/96 ampliou as possibilidades da “traição premiada” ao conferir ao § 4º a seguinte redação: “se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços”. A partir dessa nova redação, tornou-se desnecessário que o crime de extorsão tenha sido praticado por quadrilha ou bando (que exige a participação de, pelos menos, quatro pessoas), sendo suficiente que haja concurso de pes¬soas, ou seja, é suficiente que dois participantes, pelo menos, tenham concorrido para o crime, e um deles tenha delatado o fato criminoso à autoridade, possibilitando a libertação do seqüestrado. Enfim, com essa retificação legislativa de 1996 iniciou-se a proliferação da “traição bonificada”, defendida pelas autoridades repressoras como grande instrumento de combate à criminalidade organizada, ainda que, contrariando esse discurso, o último diploma legal referido tenha afastado exatamente a necessidade de qualquer envolvimento de possível organização criminosa.

  • Com efeito, a eufemisticamente denominada delação premiada, que foi inaugurada no ordenamento jurídico brasileiro com a Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90, art. 8º, parágrafo único), proliferou em nossa legislação esparsa, atingindo níveis de vulgaridade; assim, passou a integrar as leis de crimes contra o sistema financeiro (art. 25, § 2º, da Lei n. 7.492/86, com redação determinada pela Lei n. 9.080/95), crimes contra o sistema tributário (art. 16, parágrafo único, da Lei n. 8.137/90), crimes praticados por organização criminosa (art. 6º da Lei n. 9.034/95), crimes de lavagem de dinheiro (art. 1º, § 5º, da Lei n. 9.613/98) e a Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (art. 13 da Lei n. 9.807/99). O fundamento invocado é a confessada falência do Estado para combater a dita “criminalidade organizada”, que é mais produto da omissão dos governantes ao longo dos anos do que propriamente alguma “organização” ou “sofisticação” operacional da delinqüência massificada. Na verdade, virou moda falar em crime organizado, organização criminosa e outras expressões semelhantes, para justificar a incompetência e a omissão dos detentores do poder, nos últimos quase vinte anos, pelo menos. Chega a ser paradoxal que se insista numa propalada sofisticação da delinqüência; num país onde impera a improvisação e tudo é desorganizado, como se pode aceitar que só o crime seja organizado? Quem sabe o Poder Público, num exemplo de funcionalidade, comece combatendo o crime desorganizado (que é a criminalidade de massa e impera nas grandes cidades, impunemente), já que capitulou ante o que resolveu tachar de crime organizado ou organização criminosa; pelo menos combateria a criminalidade de massa, devolvendo a segurança à coletividade brasileira, que tem dificuldade até mesmo de transitar pelas ruas das capitais. Está-se tornando intolerável a inoperância do Estado no combate à crimina¬lidade, seja ela massificada, organizada ou desorganizada, conforme nos têm demonstrado as alarmantes estatísticas diariamente.

  • Como se tivesse descoberto uma poção mágica, o legislador contemporâneo acena com a possibilidade de premiar o traidor — atenuando a sua responsabilidade criminal — desde que delate seu comparsa, facilitando o êxito da investigação das autoridades constituídas. Com essa figura esdrúxula o legislador brasileiro possibilita premiar o “traidor”, a despeito de violar os mais sagrados princípios ético-morais que orientam a formação tradicional da família cristã; oferece-lhe vantagem legal, manipulando os parâmetros punitivos, alheio aos fundamentos do direito-dever de punir que o Estado assumiu com a coletividade.

  • Não se pode admitir, sem qualquer questionamento ético, a premiação de um delinqüente que, para obter determinada vantagem, “dedure” seu parceiro, com o qual deve ter tido, pelo menos, uma relação de confiança para empreenderem alguma atividade, no mínimo, arriscada, que é a prática de algum tipo de delinqüência. Estamos, na verdade, tentando falar da (i) morali¬dade e (in) justiça da postura assumida pelo Estado nesse tipo de pre¬miação. Qual é, afinal, o fundamento ético legitimador do oferecimento de tal premiação? Convém destacar que, para efeito da delação premiada, não se ques¬tiona a motivação do delator, sendo irrelevante que tenha sido por arrependimento, vingança, ódio, infidelidade ou apenas por uma avaliação calculista, antiética e infiel do traidor-delator. Venia concessa, será legítimo o Estado lançar mão de meios antiéticos e imorais, como estimular a deslealdade e traição entre parceiros, apostando em comportamentos dessa natureza para atingir resultados que sua incompetência não lhe permite através de meios mais ortodoxos? Certamente não é nada edificante estimular seus súditos a mentir, trair, delatar ou dedurar um companheiro movido exclusivamente pela ânsia de obter alguma vantagem pessoal, seja de que natureza for.

  • No entanto, a despeito de todo esse questionamento ético que atormenta qualquer cidadão de bem, isto é, de boa formação moral, a verdade é que a delação premiada passou a ser, via importação, um instituto adotado em nosso direito positivo. Falando em peculiaridades diversas, lembramos que nos Estados Unidos o acusado — como uma testemunha — “presta compromisso de dizer a verdade” e, não o fazendo, comete crime de perjúrio, algo inocorrente no sistema brasileiro, em que o acusado tem o direito de mentir, sem que isso lhe acarrete qualquer prejuízo, conforme lhe assegura a Constituição Federal. Essa circunstância, por si só, desvirtua completamente o instituto da delação premiada, pois, descompromissado com a verdade, e isento de qualquer prejuízo ao sacrificá-la, o beneficiário da delação dirá qualquer coisa que interesse às autoridades repressoras na tentativa de beneficiar-se com sua mentirosa delação, exatamente como tem ocorrido na praxis forensis. Essa circunstância retira eventual idoneidade que sua delação possa ter, se é que alguma delação pode ser considerada idônea.

  • Por outro lado, a legislação brasileira é omissa em disciplinar o modus operandi a ser observado na celebração desse “acordo processual”. Na realidade, a praxis tem desrecomendado não apenas o instituto da delação como também as próprias autoridades que a têm utilizado, bastando recordar, apenas para ilustrar, a hipótese do doleiro da CPI dos Correios e do ex-assessor do atual Ministro Palocci, que foram interpelados e compromissados a delatar, na calada da noite e/ou no interior das prisões, enfim, nas circunstâncias mais inóspitas possíveis, sem lhes assegurar a presença e orientação de um advogado, sem contraditório, ampla defesa e o devido processo legal.

  • A delação premiada constante do § 2º do art. 25 da Lei 7.492/86, acrescido pela Lei 9.080/95, é causa de obrigatória redução de pena (de um a dois terços), desde que o crime tenha sido cometido “em quadrilha ou em concurso de pessoas”, e o delator “através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá sua pena reduzida de um a dois terços”. De notar-se, ademais, que neste diploma legal, ao contrário de outros (Lei n. 9.269/96, que acrescentou o § 4º no art. 168 do CP), não condiciona a diminuição da pena à eficácia da “contribuição do delator”. O texto legal é taxativo ao dizer que o denunciante “terá sua pena reduzida” de um a dois terços, independente do resultado. A delação, segundo está expresso no texto legal, deve ser endereçada à autoridade policial ou judicial (Delegado de Polícia ou Juiz de Direito), estando excluído, por conseguinte, o Órgão do Ministério Público, que, nessas infrações penais, não pode ser o destinatário da questionada delação premiada.

  • A despeito dessa nossa antipatia para com o instituto, já que está aí, deveria, pelo menos, condicionar à eficácia da delação, como ocorre, por exemplo, no crime de extorsão mediante seqüestro, que está vinculada à efetiva libertação da vítima, ou seja, é indispensável a relação de causa e efeito: a libertação da vítima deve, necessariamente, decorrer da contribuição efetiva do delator. A simples vontade, ainda que acompanhada da ação efetiva do delator, é insuficiente para justificar a redução de pena. Em outros termos, é indispensável que a contribuição do delator, com sua conduta de alcagüete, seja eficaz no contexto em que se desenvolve o processo libertatório do ofendido. Como destaca Alberto Silva Franco , “a conduta do delator deve ser relevante do ponto de vista objetivo e voluntária, sob o enfoque subjetivo. Isso significa, de um lado, que cabe ao delator o fornecimento de dados concretos que, causal e finalisticamente, conduzam à libertação do seqüestrado”.

  • A delação premiada, a despeito da ausência de previsão legal expressa, deve ser voluntária, isto é, produto da livre manifestação pessoal do delator, sem sofrer qualquer tipo de pressão física, moral ou mental, representando, em outras palavras, intenção ou desejo de abandonar o empreendimento criminoso, sendo indiferentes as razões que o levam a essa decisão. Não basta que seja voluntária, é indispensável que seja espontânea, por exigência do texto legal (§ 2º), ao contrário da delação na hipótese de extorsão mediante seqüestro, em que o texto legal silencia a respeito (art. 168, § 4º): há espontaneidade quando a idéia inicial parte do próprio sujeito; há voluntariedade, por sua vez, quando a decisão não é objeto de coação moral ou física, mesmo que a idéia inicial tenha partido de outrem, como da autoridade, por exemplo, ou mesmo resultado de pedido da própria vítima. O móvel, enfim, da decisão do delator — vingança, arrependimento, inveja ou ódio — é irrelevante para efeito de fundamentar a delação premiada, desde que tenha sido espontânea, e não como a praxis forensis nos tem demonstrado.

  • A definição do quantum a reduzir deve vincular-se a critério objetivo que permita justificar a maior ou menor redução de pena dentro dos limites estabelecidos de um a dois terços. Um dos critérios sugeridos, segundo Silva Franco , é o maior ou menor tempo levado para a liberação do seqüestrado. Mas esse pode ser apenas um dos critérios a serem considerados, havendo outros mais relevantes, como, por exemplo, a maior ou menor facilidade encontrada pela autoridade para libertar a vítima e, especialmente, a maior ou menor contribuição do delator para a libertação daquela.

  • Mutatis mutandis, nos crimes financeiros, deve-se considerar o período de tempo que referidos crimes vinham sendo praticados, a quantidade de crimes perpetrados, além da continuidade delitiva etc. Mas o critério mais importante, certamente, deveria ser (mas não é, neste caso) a efetividade da contribuição trazida com a delação. Em síntese, a redução da pena aplicada será tanto maior quanto mais relevante for a contribuição da delação para a comprovação da autoria e participação do delatado: maior contribuição equivale a maior redução; menor contribuição significará menor redução, mantendo-se uma autêntica proporcionalidade nessa relação de causa e efeito.
 
Fonte: Facebook

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